sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Entrevista com Wellington Lyra


Neste segundo semestre de 2014 uma turma do Colégio Estadual Maria Zulmira Tôrres fez um trabalho de artes entrevistando alguns artistas da cidade. Fui o entrevistado da turma CN3001, do curso técnico de professores. Quem fez a entrevista foi a aluna Francielle Agostinho. Segue o papo:
1) Nome: Wellington Lyra
2) Idade: 31 anos
3) Onde nasceu: Cachoeiras de Macacu
4) Onde encontramos seu trabalho? Artes visuais - pinturas urbanas espalhadas em diversos pontos da cidade (paredes, muros e postes), em bairros como o centro, Valério, Ribeira, Japuíba, Setenta, Campo do Prado, Ganguri, Boca do Mato. Literatura - poesias e crônicas no blog jesusgenerico.blogspot.com. Teatro de rua - também em diversos pontos da cidade. Vídeos - no canal "Wellington Lyra" no youtube, e no canal comunitário Desperta TV.
5) Como começou o gosto pela arte? Comecei ainda criança, em casa, desenhando. Depois na escola juntei desenho e modelagem (com massinha). Na adolescência comecei a escrever poesias para lidar com a timidez, e aos 18 anos comecei a fazer oficinas de teatro, que foi o grande ponto de virada na minha vida artística. Dali pra frente tudo na minha passou a girar em torno da arte e da cultura.
6) Alguém te incentivou? Meus pais sempre me incentivaram, principalmente na infância.Tem mãe que não deixa o filho livre para fazer seus rabiscos e desenhos, e isso acaba inibindo o espírito criador da criança pra vida toda. Meus pais sempre deixaram eu me expressar, e isso me permitiu desenvolver dentro das diversas artes. Também tive grandes professores que me incentivaram muito.
7) Para você o que é ser um artista? Ser artista é aprofundar-se na experiência humana. Um ser humano que não mergulha no universo das artes nunca saberá o que é ser humano por inteiro.
8) Nos fale um pouco sobre seu trabalho. Em todos os meus trabalhos, seja na pintura, na poesia, no teatro ou no vídeo, eu busco sempre integrar o fazer artístico a algum propósito social. Não consigo mais fazer arte apenas para entretenimento ou para o prazer estético; pra mim a arte precisa necessariamente ter uma função social, de preferência que colabore para provocar mudanças no lugar e na comunidade onde ela se fizer presente. Dessa forma, no campo da pintura, escolhi pintar não em quadros, mas em toda a cidade, em seus postes, muros e paredes. Assim eu posso transmitir mensagens a todos os moradores, de forma ampla. Da mesma forma, optei pelo Teatro de Rua ao invés do teatro de palco, pois no Teatro de Rua todos os tipos de pessoas estão juntas na plateia: o trabalhador, o morador de rua, a criança, o idoso; isso democratiza o acesso à cultura, pois todos podem ter acesso, e não apenas aqueles que tem dinheiro para pagar um ingresso num espaço cultural fechado. No campo do vídeo e do cinema, tenho feito algumas experiências em escolas atuando como facilitador para que as crianças produzam seus próprios filmes, e depois exibam na internet ou em espaços como o centro cultural e o festival MacacuCine. E na área da poesia e da crônica, tenho preferência em abordar temas da realidade de Cachoeiras de Macacu, sempre de maneira crítica ou pelo menos não-convencional. Ainda no campo da literatura, me considero um escritor de facebook, certamente meu principal canal de expressão literária e de diálogo com o público, onde falo diariamente sobre política, arte, filosofia, antropologia etc.
9) Você já recebeu criticas por causa de seu trabalho? Se sim, elas te incomodam? Acho que a maior crítica que já recebi foi feita por pessoas criticando os sacis que tenho pintado e repintado desde 2008 no viaduto do centro da cidade. Alguns diziam que "saci é coisa do diabo" e coisas assim. Eu acho engraçado, não me incomodam, na verdade acho que só reforçam a minha atuação porque é justamente para causar discussão na cidade que busco trabalhar alguns temas, como esse da cultura popular através dos sacis. Alguns religiosos ainda são muito preconceituosos com o que não faz parte da cultura deles, acho isso muito mesquinho, não tem nada a ver com os valores que os grandes mestres ensinaram.
10) Em que arte você se inspira? Na arte de viver. Nos movimentos de vanguarda. Nas múltiplas manifestações do divino e do espiritual. Sou muito ligado à espiritualidade em todas as suas diferentes formas de se manifestar. Na minha cabeça, Jesus, Buda, Krishna e Oxalá estão sentados juntos batendo papo. Acho essa multiplicidade cultural, religiosa, sexual, social, uma fonte incrível de inspiração para as artes. Por isso escolhi fazer Antropologia na faculdade, a gente estuda isso tudo.
11) Já pensou em abandonar tudo, por causa de algum contratempo? Já pensei em abandonar Cachoeiras algumas poucas vezes, por falta de apoio. Pensei em morar em cidades mais evoluídas no campo das artes como Recife, Olinda, mas depois reconsidero e resolvo ficar. Tem um lema que é o seguinte: "Ou você muda a cidade ou você se muda da cidade". Eu escolhi mudar a minha cidade.
12) Cite e comente 3 obras suas.
1. Painel "Sacizada" (centro, atrás da rodoviária) - Originalmente, pintei um grande Saci no viaduto em 2008, para comemorar o Dia Nacional do Saci (31 de outubro). Alguns anos mais tarde, em setembro de 2011, a prefeitura apagou a pintura. Meu amigo Alexandre Sonzeira e eu repintamos em novembro de 2011. Depois, em 2012, a prefeitura apagou de novo, juntamos mais gente, refizemos e ainda adicionamos mais uns cinco sacis. Apagados novamente, juntamos uma galera e fizemos treze. Em 2014, o painel sofreu algumas intervenções do coletivo Ding Lause e outros grafiteiros da cidade, reduzindo o número de sacis e incrementando a pintura de outros. Eu considero um trabalho muito emblemático, tanto por esse histórico de destruições e reconstruções, como pelo fato de estar situado no coração da cidade, mas principalmente por se tratar da valorização de uma figura do folclore brasileiro que tem muito a ver com o fato de sermos um município do interior do estado, com nossas lendas, causos. Tem muita gente do Faraó e do Guapiaçu que jura que já viu saci...
2. Pintura "Sereia" (centro, pode ser vista das duas pontes e da Rua Nicomedes Arruda) - Na mesma linha do saci, pensei em espalhar seres do folclore em toda a cidade, para nos lembrar que moramos numa cidade do interior. Fiz essa pintura da Sereia na margem do Rio Macacu num lugar bastante inusitado, de difícil acesso. Pintei em um dia chuvoso, e ainda por cima com um monte de canos de esgoto espirrando na minha cabeça ali atrás dos comércios da Rua Rui Barbosa. Visualmente, acho que é das minhas melhores pinturas, gosto muito.
3. "Ciranda Sagrada" (Boca do Mato) - Fiz essa pintura durante um mutirão do projeto "Arte no Poste" (projeto que percorria diversos bairros promovendo pinturas urbanas). A ideia do Arte no Poste era pintar temas que tivessem a ver com cada bairro, para dar destaque a esses temas. Boca do Mato é um bairro fincado no meio da floresta que abriga diversas correntes espiritualistas, entre elas uma igreja católica, uma tenda de umbanda, um terreiro de candomblé e cultos do Daime, e todos coexistem respeitosamente. Tentei expressar essa coexistência na pintura. Lá fiz uma ciranda com figuras como Jesus, Buda, Krishna, um monge, um indígena, Iemanjá. O trabalho fica na pracinha no meio do bairro, perto da primeira instituição de Umbanda do Brasil.
13) Tem algo que não perguntamos que você gostaria de falar? Meu signo. Sou canceriano convicto. E se não fosse, daria um jeito de me tornar.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sobre árvores


(originalmente publicado no jornal
Estado em Notícias de 6/agosto)



Sobre árvores




Toda vez que vou ao Jequitibá, em Boca do Mato, volto pra casa diferente, como se uma parte de mim morresse e outra surgisse em seu lugar. Tomo o ônibus na rodoviária, encontro meu lugar, observo as casas e pessoas que passam na janela, o vento nos cabelos, a vida que passa. Sigo na carona até o seu ponto final. Desembarco. Em caminhada, subo a ladeira até a entrada da floresta. Peço licença, dou os primeiros passos e o ambiente ao redor já muda. A mata fica mais densa, ouço sons que não conheço, vejo fileiras de árvores de todos os tipos: grossas, magras, altas, arbustos, cipós. Vez em quando um inseto, outra vez borboleta, um canto de pássaro no alto da copa. Passo a passo, floresta adentro, meu corpo amplifica todos os seus sentidos: os olhos mais atentos para a paisagem incomum, os ouvidos bombardeados por uma orquestra de pequenas maravilhas, o olfato confuso pela confluência de cheiros florais, a pele sensível ao mínimo toque de uma teia de aranha ou uma folha que cai. Alguns minutos à frente, abre-se o clarão encantado que revela o ilustre gigante morador da montanha... o Jequitibá. Peço licença mais uma vez, emocionado pelo privilégio de olhar de tão perto um ser vivo desta importância - certamente muito mais importante que eu, que você que lê este texto, que qualquer ambientalista ou governante - e me aproximo de sua pele encouraçada, cheias de ranhuras construídas pelos séculos e séculos de seiva e história em que ele impera na mata fechada. Humilde em minha insignicância humana, abro meus braços na intenção de abraçá-lo, mas no fim é ele quem me abraça, conforta-me, acolhe-me, me traz ensinamentos ancestrais no silêncio de sua serenidade, na imponência de sua perseverança vegetal. Por um instante mágico, árvore e humano fundem-se em comunhão, abraçam-se mutuamente inundados pelo grande mistério que é estar vivo. Por um momento infinito, nossas consciências se celebram em cumplicidade, compartilham palavras secretas, alimentam-se da mesma luz e bebem da mesma água que encharca o chão. (...) Quando volto ao ponto de ônibus para ir pra minha casa, já sou outro, já não me reconheço mais. O contato com o divino modifica minha estrutura molecular, muda minha percepção sobre o mundo, altera meu olhar. (...) Num outro dia, em outro ponto da cidade, passo próximo a um canteiro de obras e vejo três ou quatro frondosas árvores despedaçadas ao chão, seus corpos mutilados e ainda sangrando, mortas para dar passagem a uma ciclovia que avança. Olho para mim, e penso no quão insignificante sou.




Wellington Lyra é um habitante da Mata Atlântica.